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BLOG MAR & DEFESA

A Invasão da Ucrânia e a Proliferação Nuclear*

Atualizado: 26 de abr.

Leonam Guimarães**


MAR & DEFESA | 25 DE ABRIL DE 2024


Imagem baixada do artigo original em 22/04/24.


Da Editoria


O presente artigo, publicado originalmente quatro meses depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, aborda os acordos políticos que levaram à desnuclearização da Ucrânia, de que forma ocorreu o rompimento desses acordos pela Rússia - ainda em 2014 -, e quais as consequências que a invasão de 2022 poderá gerar na proliferação nuclear no mundo.


Interessante observar que o prognóstico de fortalecimento e ampliação da OTAN, feito pelo autor, se mostrou acertado, ao observarmos hoje o aumento de investimentos no setor de defesa feito pelos países da Aliança, bem como as adesões recentes de Finlândia e Suécia.


Não queremos aqui propugnar, de maneira simplista, a que o Brasil inicie agora um projeto de fabricação de ogivas nucleares, mas cabe aos decisores políticos e militares considerarem o que ocorreu na Ucrânia, e prepararem o País para prover, autonomamente, a defesa de seus interesses, sem depender de "cobertura" externa.


Na verdade, nem precisaríamos ir até a Ucrânia para aprender a lição: basta nos lembrarmos para onde "pendeu a balança" em 1982, durante o conflito das Malvinas/Falklands.


Boa leitura!


Francisco Novellino

Editor



"A Invasão da Ucrânia e a Proliferação Nuclear"


Em 1º de junho de 1996, dois trens chegaram à Rússia transportando as últimas ogivas nucleares que haviam sido alocadas pela então União Soviética na Ucrânia. Isso concluiu o processo no qual Kyiv abriu mão do que era então o terceiro maior arsenal de armas nucleares do mundo, superando a Grã-Bretanha, a França e a China juntas. O governo ucraniano fez isso em grande parte por causa das garantias da Rússia de que respeitaria a soberania e integridade territorial da Ucrânia e se absteria do uso da força contra aquele país. Vinte e seis anos depois, a Rússia está há mais de 100 dias em uma invasão massiva da Ucrânia. Isso, compreensivelmente, levou os ucranianos a questionar a sensatez de desistir dessas armas nucleares, e a guerra de Vladimir Putin desferiu um golpe severo aos esforços futuros para deter a proliferação nuclear.


O Caminho da Ucrânia para a Desnuclearização


Quando a União Soviética entrou em colapso no final de 1991, a Ucrânia se viu com cerca de 4.400 ogivas nucleares em seu território – 1.900 estratégicas e 2.500 ogivas táticas e de teatro, bem como os mísseis balísticos intercontinentais SS-19 e SS-24 (ICBMs) e bombardeiros Blackjack e Bear para lançamento de ogivas estratégicas. A Rússia rapidamente providenciou a transferência para seu território das armas não estratégicas da Ucrânia, que foi concluída em maio de 1992. Mas as armas estratégicas permaneceram.


O governo da Ucrânia, então recém-independente, estava inclinado a se tornar um estado sem armas nucleares. A declaração de soberania estatal da Ucrânia em julho de 1990 dizia que o país não aceitaria, produziria ou compraria armas nucleares. Mas, antes de dar o parecer final quanto a sua remoção, as autoridades ucranianas estabeleceram uma série de questões a serem abordadas. Primeiro, as armas nucleares eram vistas como conferindo benefícios de segurança, e Kyiv buscou garantias para sua segurança depois que elas fossem transferidas para a Rússia. Em segundo lugar, as autoridades ucranianas queriam uma compensação pelo valor do urânio altamente enriquecido contido nas ogivas. Terceiro, como sucessora da União Soviética para fins do Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START) de 1991, a Ucrânia teria que eliminar os ICBMs, silos de ICBMs, bombardeiros e outras infraestruturas nucleares em seu território, mas Kyiv não tinha certeza de como cobrir os custos de fazê-lo, dadas suas perspectivas econômicas incertas.


Autoridades ucranianas e russas negociaram em canais bilaterais sobre essas questões em 1992-1993. Eles mantiveram as autoridades americanas informadas, em parte porque Kyiv esperava que os Estados Unidos se juntassem para fornecer garantias de segurança. Washington concordou em fazê-lo, pois isto implicava um compromisso de força militar que as autoridades americanas não estavam dispostas a fornecer à Ucrânia em caso de violação de sua soberania ou integridade territorial. Em setembro de 1993, após uma reunião entre o presidente ucraniano Leonid Kravchuk e o presidente russo Boris Yeltsin, os dois lados relataram que as questões sobre a transferência das ogivas nucleares estratégicas para sua eliminação na Rússia haviam sido resolvidas. No entanto, este acordo entrou em colapso em poucos dias.


Temendo que Kyiv e Moscou sozinhos pudessem se mostrar incapazes de chegar a um acordo, as autoridades norte-americanas posteriormente decidiram se envolver mais diretamente. Os Estados Unidos também estavam preocupados com a entrada em vigor do START depois que o governo russo o condicionou à adesão da Ucrânia ao Tratado de Não-Proliferação (TNP) como um estado sem armas nucleares. Autoridades russas saudaram a participação dos EUA, porque entenderam que Washington compartilhava seu objetivo de tirar as armas nucleares da Ucrânia. Autoridades ucranianas também saudaram a participação dos EUA, acreditando que teriam apoio dos Estados Unidos em certas questões.

Após discussões trilaterais em Kyiv em meados de dezembro de 1993, autoridades dos EUA viram a possibilidade de fechar um acordo e convidaram autoridades ucranianas e russas a Washington no início de janeiro de 1994. As negociações produziram a Declaração Trilateral, assinada por Kravchuk, Yeltsin e o presidente dos EUA, Bill Clinton em 14 de janeiro de 1994, em Moscou.


Termos do Acordo


A Declaração Trilateral refletiu uma série de pontos, incluindo o compromisso da Ucrânia de aderir ao TNP como um estado não nuclear “no menor tempo possível”, o acordo sobre a “transferência simultânea de ogivas nucleares da Ucrânia [para a Rússia] e a entrega de compensação [pelo valor do urânio altamente enriquecido nas ogivas nucleares estratégicas] para a Ucrânia na forma de conjuntos de combustível para usinas nucleares”, bem como o compromisso dos EUA de fornecer assistência para ajudar a Ucrânia a eliminar os sistemas estratégicos de lançamento em seu território conforme exigido pelo START.


A Declaração Trilateral também continha as garantias de segurança específicas que os Estados Unidos, a Rússia e o Reino Unido forneceriam à Ucrânia assim que aderisse ao TNP. As garantias de segurança incluíam compromissos “de respeitar a independência e soberania e as fronteiras existentes” da Ucrânia e “de abster-se da ameaça ou do uso da força” contra a Ucrânia. Esses compromissos foram posteriormente refletidos no Memorando de Garantias de Segurança de Budapeste, assinado em dezembro de 1994. Além de assinar a Declaração Trilateral, os três líderes trocaram cartas confidenciais. Isso refletia o acordo de Kyiv de que todas as ogivas nucleares restantes seriam transferidas para a Rússia para eliminação até 1º de junho de 1996, e o acordo de Moscou de fornecer compensação à Ucrânia pelas ogivas nucleares não estratégicas que já haviam sido removidas.


Em fevereiro de 1994, oficiais russos e ucranianos reuniram-se bilateralmente e concordaram em cronogramas para a transferência das ogivas nucleares estratégicas para a Rússia e a transferência de elementos combustíveis para usinas nucleares da Ucrânia. Eles também concordaram com a compensação que a Ucrânia receberia, uma anulação da dívida, pelo valor do urânio altamente enriquecido nas ogivas nucleares não estratégicas. As primeiras transferências começaram logo depois.


Em novembro de 1994, o parlamento da Ucrânia, a Rada, aprovou seu instrumento de adesão ao TNP. Isso preparou o terreno para Clinton, Yeltsin, o recém-eleito presidente ucraniano Leonid Kuchma e o primeiro-ministro britânico John Major receberem o instrumento de adesão da Ucrânia ao TNP e assinarem o Memorando de Garantias de Segurança de Budapeste em 5 de dezembro de 1994. Ucrânia e Rússia completaram as respectivas transferências de ogivas nucleares e elementos combustíveis um ano e meio depois.


A INVASÃO DA UCRÂNIA PELA RÚSSIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS


Em fevereiro de 2014, no entanto, a Rússia de Putin, em uma violação grosseira de seus próprios compromissos estabelecidos no Memorando de Budapeste, usou a força militar para tomar a Crimeia da Ucrânia e, posteriormente, anexou-a. Pouco tempo depois, em março de 2014, forças de segurança e militares russas se envolveram no conflito em Donbas, no leste da Ucrânia, um conflito que custou aproximadamente 14.000 vidas antes de fevereiro de 2022, quando a Rússia lançou uma invasão em grande escala de seu vizinho ocidental.


Se a Ucrânia tivesse mantido armas nucleares, suas relações com os Estados Unidos, Europa e organizações como a União Europeia e a OTAN provavelmente não teriam se desenvolvido como nos últimos 25 anos, e Kyiv teria um enorme problema com Moscou, mas os fatos subjacentes ao caso teriam parecido diferentes. Consequentemente, os ucranianos, compreensivelmente, agora olham para trás e questionam a sabedoria de desistir das armas nucleares. A Rússia teria agido como agiu em 2014 e 2022 se a Ucrânia tivesse mantido algumas de suas ogivas nucleares? A invasão da Rússia a seus compromissos de segurança com a Ucrânia, para não mencionar a brutalidade da guerra que os militares russos travaram, quase certamente deixará Kyiv desconfiada de qualquer acordo futuro com Moscou.


Enquanto isso, de acordo com o que as autoridades dos EUA disseram a seus colegas ucranianos no momento da negociação das garantias de segurança, Washington forneceu assistência militar significativa à Ucrânia, incluindo mísseis anti-blindados, veículos blindados, artilharia pesada e grandes quantidades de munição, um pacote de assistência no valor de mais de US$ 4,5 bilhões desde janeiro de 2021. Além disso, em maio de 2022, o Congresso dos EUA aprovou outro pacote multibilionário de ajuda militar e apoio econômico a Kyiv. Os Estados Unidos também trabalharam com a União Europeia e outros estados para impor grandes sanções econômicas à Rússia.


A guerra é uma tragédia para a Ucrânia, que sofreu a morte de milhares de soldados e civis e imensos danos físicos. Mas é sem dúvida também um desastre para a Rússia, que perdeu muitos milhares de soldados, sofrerá grande dificuldade econômica como resultado das sanções ocidentais e enfrentará uma OTAN rejuvenescida, e muito provavelmente ampliada em breve.


Os esforços de não-proliferação podem vir a ser outra importante vítima da guerra. O flagrante descaso da Rússia de seus compromissos de 1994 com a Ucrânia desacreditou as garantias de segurança no conjunto de ferramentas dos esforços de não proliferação. O que a Rússia (que tem o maior arsenal nuclear do mundo) fez com a Ucrânia (um país que desistiu de seu arsenal) provavelmente ficará no topo da mente daqueles em países que no futuro que consideram adquirir ou desistir de armas nucleares.


* Artigo publicado originalmente em Cadernos de Estudos Estratégicos n. 01/2023 ISSN 1808-947x, da Escola Superior de Guerra, e no perfil do autor no LinkedIn, em 09 de junho de 2022.

Link para o artigo original: https://www.linkedin.com/pulse/invas%C3%A3o-da-ucr%C3%A2nia-e-prolifera%C3%A7%C3%A3o-nuclear-leonam-guimar%C3%A3es. Trechos em negrito inseridos pela Editoria do MAR & DEFESA.


** Leonam Guimarães é Engenheiro Naval e Doutor em Engenharia Nuclear. Exerce atualmente os cargos de Diretor Técnico da Associação Brasileira para Desenvolvimento das Atividades Nucleares (ABDAN) e Coordenador do Comitê de C&T da Amazul Tecnologias de Defesa S.A. (AMAZUL). Foi Diretor-Presidente da ELETRONUCLEAR e Coordenador do Programa de Propulsão Nuclear do CTMSP (Marinha do Brasil). É membro titular da Academia Nacional de Engenharia (ANE).

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