Publicado no blog MAR & DEFESA em 08 de julho de 2022
Imagem: https://www.naval.com.br/blog/2018/07/30/russia-reforcara-sua-marinha-com-26-novos-navios-de-guerra. Baixada em 08/07/22.
* Excertos do artigo Classificação de Marinhas: Uma proposta de metodologia comparativa, publicado na Revista Marítima Brasileira, v. 142, no. 01/03, jan/mar 2022. Autores: Francisco Eduardo Alves de Almeida - doutor em História Comparada (UFRJ) e pós-doutor em Ciências Políticas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa; professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN) ; Coordenador do projeto "Classificação de Marinhas", inserido no Projeto Pró-Defesa III Capes/MD - e Ricardo Pereira Cabral - mestre e doutor em História Comparada (UFRJ); professor e colaborador do PPGEM-EGN; membro do Projeto "Classificação de Marinhas", inserido no Projeto Pró-Defesa III Capes/MD.
INTRODUÇÃO
UMA DAS MAIORES DIFICULDADES com as quais os analistas navais se defrontam na atualidade é classificar as Marinhas de guerra do Mundo segundo seu poder relativo. Sendo uma análise relativa, que parâmetros considerar para essa comparação? Como definir qual meio de combate seria o mais poderoso? Aumentando o universo da amostragem [N.E.: a partir da simples comparação entre classes de navios], em relação à comparação entre Marinhas de guerra, quais parâmetros dever ser considerados? Somente o número de meios seria suficiente para indicar qual a Marinha mais poderosa? Por exemplo, uma Marinha dotada de cem navios-patrulha seria mais poderosa do que uma dotada de apenas dez contratorpedeiros? Essas questões assumem maior gravidade ainda quando se traz ao problema a capacidade de um país se projetar e construir seus próprios meios de combate, de possuir maior tecnologia agregada à construção naval, de disponibilizar maiores recursos financeiros na preparação e utilização de seus navios de guerra para o cumprimento de suas missões e, finalmente, de treinar seus tripulantes que guarnecem os seus meios de combate. Seria a tradição naval também um fator a ser considerado? Sem essas definições e, se possível, mensurações relativas à comparação, torna-se muito mais problemática a questão.
O que se pretende com este artigo é estabelecer parâmetros que possam ser “comparáveis” entre si, tendo como amostra os números e as capacidades publicadas em periódicos e documentos oficiais ostensivos das Marinhas de guerra atualmente em atividade no mundo.
O que se pretende é estabelecer uma metodologia para se classificar as Marinhas de guerra do mundo em um ranking, segundo parâmetros mensuráveis. Para tal, precisam ser definidos quais parâmetros seriam comparados e o tipo de Marinha que se está avaliando, segundo suas capacidades e tarefas. Pretende-se, dessa maneira, discutir as principais classificações de Marinhas segundo as percepções dos principais teóricos dos Estudos Marítimos na atualidade e, em seguida, apresentar as ambiguidades desses modelos teóricos. Em sequência, serão discutidos a metodologia proposta e seus parâmetros balizadores, que irão nortear a classificação relativa dos poderes navais. Por fim, será mostrada a aplicação do modelo proposto no caso das Marinhas das Américas, apresentando uma classificação comparativa e o ranking de poder entre elas.
CLASSIFICAÇÃO DE MARINHAS, UM PROBLEMA A SER RESOLVIDO
O primeiro modelo que se tornou referência como exemplo comparativo entre os poderes navais foi o chamado Modelo de Ciclos Longos de Poder Marítimo, elaborado pelos professores George Modelski e William Thompson, das Universidades de Washington e do Estado da Flórida, respectivamente. Suas pesquisas foram publicadas no livro Sea Power in Global Politics – 1494-1993, no ano de 1988, edição da Universidade de Washington.
Uma segunda tentativa de hierarquizar as Marinhas de guerra no tempo presente foi proposta por Michael Morris em seu livro Expansion of Third World Navies, publicado em 1985 pela St. Martin’s Press. Concentrando-se nas Marinhas do chamado Terceiro Mundo, Morris distinguiu seis níveis a partir de uma análise essencialmente quantitativa, utilizando como parâmetros os chamados “grandes navios de combate”. Para ele, as marinhas terceiro-mundistas poderiam ser dos seguintes níveis:
Nível 1- Marinhas Regionais;
Nível 2 – Marinhas Sub-regionais ou de Projeção Adjacente;
Nível 3 – Marinhas de Defesa de Área;
Nível 4 – Marinhas Costeiras;
Nível 5 – Marinhas de Vigilância.
Uma terceira proposta de classificação de Marinhas foi idealizada por Hervé Coutau-Bégarie em seu livro Tratado de Estratégia, publicado em 2010 pela Escola de Guerra Naval, em parceria com a Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. Nessa proposta, Coutau-Bégarie, inspirado na utilização de navios de linha a vela do modelo Modelski/Thompson, enquadrou as Marinhas de combate em seis níveis, a saber:
- Marinhas de 1º Nível – são as chamadas Marinhas Globais. Elas dispõem de todas as categorias de armamentos e equipamentos modernos, podendo cumprir todas as funções de dissuasão e de intervenção em qualquer local do mundo;
- Marinhas de 2º Nível – são Marinhas também com capacidade global, com força oceânica capaz de se apresentar em todos os oceanos, podendo intervir ocasionalmente além de seu ambiente regional;
- Marinhas de 3º Nível – são Marinhas regionais, sem capacidade de dissuasão nuclear, porém com forte capacidade de operarem em teatro oceânico;
- Marinhas de 4º Nível – são chamadas de sub-regionais, com menos meios que as de 3º Nível, mas podendo intervir em alto-mar;
- Marinhas de 5º Nível – são as Marinhas costeiras, porém com boa capacidade militar, cada uma adaptada a um tipo de teatro e missões específicas;
- Marinhas de 6º Nível – são forças navais policiais sem potencial militar.
Uma quarta proposta de classificação de Marinhas foi apresentada por Eric Grove em seu livro The Future of Sea Power, de 1990, publicado pelo U.S. Naval Institute. Grove dividiu as Marinhas em dez níveis segundo sua importância em relação a seu poder mundial:
- Nível 1 – Grandes Marinhas com Força Global e Projeção de Poder Completo;
- Nível 2 – Grandes Marinhas com Força Global e Projeção de Poder Parcial;
- Nível 3 – Médias Marinhas com Força Global e Projeção de Poder;
- Nível 4 – Médias Marinhas com Força Regional e Projeção de Poder;
- Nível 5 – Marinhas Adjacentes com Projeção de Poder;
- Nível 6 – Marinhas de Defesa Territorial Offshore;
- Nível 7 – Marinhas de Defesa Territorial Inshore;
- Nível 8 – Marinhas Constabulares;
- Nível 9 – Marinhas Diminutas.
A classificação apresentada por Eric Grove é um avanço em relação às tipologias anteriores, pois, além de classificar as Marinhas de modo mais preciso e abrangente, cita exemplos de forças que se encaixam nos seus diferentes nove níveis classificatórios. Trata-se da primeira classificação relativa de Marinhas, embora o autor não as hierarquize segundo poderes relativos. Essa tipologia poderá servir como referência para a proposição de uma nova classificação.
Segundo Geoffrey Till em Seapower a guide for the Twenty-First Century, em sua segunda edição (2009), o ato de classificar Marinhas é “difícil e perigoso”. No entanto existem pontos que podem ser levados em consideração para quem deseja organizar as Marinhas e classifica-las segundo um critério objetivo, transparente e justo. Eles são os seguintes:
- Tamanho e Natureza da Marinha, em que se leva em consideração, além dos números, a capacidade de manter grandes navios de superfície;
- Alcance Geográfico, que seria a capacidade de a Marinha operar afastada de sua própria costa;
- Função e Capacidade, ou seja, a sua função, oceânica ou não, e a sua capacidade de conduzir determinadas operações;
- Tecnologia, que seria a capacidade de ter acesso a tecnologias avançadas; e
- Reputação, que se traduziria no seu poder de dissuasão e na percepção que as outras Marinhas têm dela. A esta característica estaria associada a sua experiência de combate.
Dessa forma, pode-se deduzir que não existem classificações que reflitam efetivamente os poderes relativos entre as Marinhas do Mundo, sendo necessário estabelecer critérios tanto quantitativos como qualitativos para uma classificação o mais próximo possível da realidade.
Pretende-se com esta categorização estabelecer uma classificação que seja capaz de mensurar relativamente poderes navais dentro dos cenários internacional e regional de defesa e segurança. Para isso serão utilizadas fontes ostensivas com parâmetros a serem determinados e ponderados segundo pesos específicos. Alguns fatores, no entanto, devem ser definidos para o estabelecimento de uma metodologia consistente, quais seja: Que tipo de alcance devem ter cada uma das Marinhas de guerra analisadas, segundo suas capacidades, interesses e projeção? Que parâmetros devem ser quantificados, levando-se em consideração determinantes que interessam ao poder naval de cada estado como fatores
importantes para a medição de poder relativo entre forças navais? Quais os pesos específicos para cada parâmetro estabelecido, levando-os em consideração como medições do poder relativo entre forças navais? Como hierarquizar as Marinhas de guerra mundiais segundo um sistema de pontuação de 0 a 100 e conforme os pesos específicos estabelecidos, da mais poderosa até a menos poderosa?
METODOLOGIA DE CLASSIFICAÇÃO DE MARINHAS
A metodologia empregada foi a comparativa, utilizando indicadores econômicos e militares e tendo como referências publicações abertas e conceituadas no meio naval. A comparação se expressou em requisitos necessários para comparar poderes navais, tais como capacidade tecnológica, quantidade de meios e experiência de combate, entre outros. Como não se pode confrontar requisitos distintos, como quantidade de meios e recursos naturais, utilizou-se a
sistemática de pesos, na qual os requisitos mais importantes teriam maiores pesos, enquanto os menores teriam menores pesos. Dependendo do tipo de parâmetro apontado, privilegiou-se a avaliação quantitativa quando foi possível estabelecer valores numéricos para a comparação. Em outros casos, como, por exemplo, a “mentalidade marítima”, privilegiou-se a avaliação qualitativa, por ser difícil quantificar a mentalidade.
Esta avaliação ocorreu por meio de análises. Os 11 parâmetros comparativos selecionados e seus pesos específicos foram os seguintes:
1) Número de meios – peso 2, análise quantitativa e qualitativa. Sempre que
necessário e quando existiam referências para tal, procurou-se analisar, além do
número de meios, a capacidade de aprestamento dos navios.
2) Tipos de meios existentes – peso 4, análise quantitativa e qualitativa. Este
peso deveu-se a diferenciar um porta-aviões de um navio-patrulha, atribuindo maior
peso ao primeiro do que ao segundo. Sempre que possível, procurou-se analisar o
nível de treinamento do meio considerado como um conjunto navio e tripulação.
3) Efetivos Navais – peso 1, análise quantitativa. Este baixo peso relativo
considera apenas os efetivos navais, sem a análise de seu treinamento.
4) Razão Efetivos Navais / População – peso 1, análise quantitativa. Este
número reflete o percentual da população envolvida com as lides navais.
5) Bases e Estaleiros – peso 2, análise quantitativa e qualitativa. Este
parâmetro refere-se à capacidade logística de um país apoiar seus meios navais em
reparos e manutenção.
6) Nível Tecnológico – peso 4, análise qualitativa. Este parâmetro refere-se ao
nível tecnológico de determinado país e de sua Marinha de combate. Como este
parâmetro é de difícil mensuração e dependente de diversos fatores, sua análise
será qualitativa.
7) Capacidade Nuclear – peso 2, análise qualitativa. Este parâmetro refere-se à capacidade de um país dominar o ciclo nuclear e de utilizar essa energia em proveito da Marinha.
8) Experiência de Combate – peso 1, análise qualitativa. Refere-se à atuação
de sua Marinha em operações reais de combate.
9) Capacidade Financeira – peso 4, análise quantitativa e qualitativa. Diz respeito à capacidade de um Estado manter seus navios em condições de prontidão eficiente e eficaz, tendo como referência o Produto Interno Bruto (PIB).
10) Recursos Naturais – peso 1, análise quantitativa e qualitativa. Refere-se à capacidade de um Estado em explorar seus recursos naturais em prol do fortalecimento de seu poder naval. Está ligado a outros parâmetros já apresentados.
11) Capacidade de Construção Naval – peso 3, análise quantitativa e qualitativa. Reflete a capacidade de um Estado construir seus próprios navios de combate e de exportar para outros estados. Nesse parâmetro insere-se a produção de armamento, sensores e munição próprios. Está ligado a outros parâmetros apresentados.
De posse desses 11 parâmetros métricos com os seus pesos específicos, já se poderá preparar uma classificação de Marinhas por ordem da mais poderosa até a menos potente. Essa numeração em nenhum momento estabelecerá que uma Marinha com 90 pontos seja duas vezes superior que uma Marinha com 45 pontos, mas apenas hierarquiza as Marinhas segundo uma pontuação sem correlação com poderio, somente com posição relativa na tabela final, por área geográfica.
Esta investigação pretende hierarquizar essas Marinhas de modo mais preciso que as existentes atualmente, que levam somente em consideração a questão qualitativa. Procurou-se utilizar parâmetros numéricos hierarquizados como um fator mais próximo da realidade em termos de poder relativo.
O CASO DAS AMÉRICAS E A APLICAÇÃO DO MODELO
Tomando como referência as Marinhas das Américas, chega-se a um total de 15 países que possuem forças navais constituídas. A Marinha dos EUA se sobressai, como era esperado, como a mais poderosa no continente americano. Sua posição é a de número 1, com 99 pontos em 100 possíveis. O Poder Naval que lhes segue é o do Brasil, com 49,5 pontos. Isso significa dizer que existem 49,5 pontos que os separam, porém isso não significa dizer que a Marinha norte-americana seja o dobro da brasileira. Os pontos que separam os dois poderes navais indicam a distância considerável entre as duas Marinhas.
Ao se compararem os dois parâmetros analisados, “Tipos de Meios” e “Resultado Final”, têm-se quase uma coincidência de hierarquização: EUA, Brasil, Canadá e Argentina, com o México se colocando como potencialmente mais capacitado a desenvolver o seu poder naval em relação à Argentina, mas menos poderoso na atualidade do que esse último. Em seguida, despontam cinco países sul-americanos: Peru, Chile, Venezuela, Colômbia e Equador. O caso do Peru é emblemático, já que no primeiro parâmetro ocupa a quinta colocação, caindo no
ranking quando confrontado com a sua capacidade potencial de desenvolver seu poder naval (nona colocação), com 38,5 pontos. Os demais países analisados encontram-se bem afastados destes.
Os outros parâmetros considerados na metodologia indicam não somente a situação presente entre as Marinhas consideradas em termos de números, mas também a capacidade total que determinado país tem em desenvolver o seu poder naval plenamente em comparação com outros poderes, isto é, a capacidade disponível potencial para o seu crescimento.
Essa classificação foi baseada em discussões conduzidas com oficiais de Marinha com ampla experiência em operações no mar, especialistas em estudos do poder marítimo e alunos do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos. Ela foi essencialmente uma avaliação qualitativa baseada nas operações conduzidas pelos poderes navais analisados nos últimos dez anos.
Outro ponto percebido é a distância entre a Marinha norte-americana e as demais Marinhas americanas. Pode-se prever que nos próximos dez anos haverá um aumento ainda maior nas pontuações comparativas entre os EUA e os demais países e que o hiato entre esses poderes navais e o norte-americano será cada vez maior, em razão do nível tecnológico-financeiro dos EUA ser cada vez mais distante dos [demais] países americanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito principal deste artigo é estabelecer um método o mais próximo possível da realidade para classificar Marinhas de guerra no tempo presente. Foram assim estabelecidos 11 parâmetros considerados relevantes na avaliação de um poder naval e indicados pesos específicos para cada um desses parâmetros, de acordo com sua importância de um em relação aos outros. A escolha de cada um desses parâmetros foi produto de amplo debate com especialistas no campo da Segurança e Defesa. Como se pode constatar, as decisões de cada um desses fatores e dos pesos foram produto de consenso após ampla deliberação.
Por ser fruto de percepções motivadas pela experiência dos analistas e por ser um método comparativo que trafega no campo das Ciências Humanas, poderá ser aperfeiçoado. Como todo processo desse campo, poderá ser passível de críticas, o que de forma alguma inviabiliza sua aplicação.
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