Francisco Novellino*
MAR & DEFESA | 16 DE DEZEMBRO DE 2024
A expressão core business é largamente utilizada no meio empresarial. De acordo com a Wikipédia, é um termo em Inglês que significa “a parte central de um negócio ou de uma área de negócios, e que é geralmente definido em função da estratégia dessa empresa para o mercado. Este termo é utilizado habitualmente para definir qual o ponto forte e estratégico da atuação de uma determinada empresa... Utiliza-se também para definir a área de atuação onde não pode, ou não deve... ser terceirizada, sendo inteiramente gerida pela própria empresa”. Adicionalmente, de acordo com artigo publicado pela Federação das Empresas Juniores do Estado de São Paulo (FEJESP), core business pode ser ainda entendido como “um tipo de projeto que está dentro de seu portfólio, mas que se destaca... dentre a grande gama de produtos que a organização oferece”. Esse último define, ainda, a expressão como sendo a somatória das respostas a quatro perguntas: Para quem vendemos o principal serviço da empresa? O que é isso que vendemos, exatamente? Qual o nosso diferencial competitivo frente aos concorrentes diretos desse tipo de serviço? Através de que canal de distribuição nós atingimos esse mercado?
Atualmente, observa-se, no Brasil, uma timidez em divulgar os resultados estritamente bélicos decorrentes da atividade militar, como se tal coisa não fosse “politicamente correta”. Em seu lugar, proliferam notícias que apresentam as Forças Armadas como um celeiro de especialistas em esportes de alto desempenho, saúde, segurança pública, poder marítimo ou aeroespacial (sem conotação bélica), engenharias diversas, ciências da computação, administração pública, “comentaristas” e ativistas políticos. A única exceção à regra é quando se trata de divulgar a participação do Brasil em operações de paz da ONU ou de combate ao narcotráfico.
Onde estão as notícias divulgando os rotineiros (e precisos) exercícios de tiro, empregando torpedos, foguetes, morteiros, bombas, canhões, metralhadoras e mísseis? Seria o caso de falta de recursos para executar a atividade-fim, ou existe uma censura política e cultural imposta às Forças Armadas? Os militares que “respiram pólvora” e que expõem rotineiramente suas vidas a bordo das aeronaves de combate, navios de guerra, em veículos armados ou em operações na tropa são reconhecidos pelos seus pares e pela classe política como a razão de ser da Marinha, do Exército e da Força Aérea?
É digno de nota que a Constituição Federal e os documentos acadêmicos e doutrinários têm evitado utilizar a expressão “Segurança Nacional”, talvez pelo fato de estar intimamente ligada ao Regime Militar (1964-1985). Ignoram que o termo faz parte do vocabulário das democracias mais sólidas do mundo. Felizmente, as versões mais recentes da Política Nacional de Defesa (PND) reintroduziram o conceito. Tudo leva a crer numa estratégia muito bem elaborada de “eunuconização” das Forças Armadas Brasileiras, do ponto de vista de combatividade militar externa e, adicionalmente, preeminência política interna. A propósito, julgo conveniente reproduzir texto do ensaio de François Martins, coronel do Exército de Portugal que, em 1982, apontava, com lucidez: “Enquanto o risco de guerra subsistir e não houver autoridade internacional competente e que disponha de recursos suficientes, não se poderia negar aos governos, uma vez esgotadas todas as possibilidades de regulamentação pacífica dos conflitos, o direito de legítima Defesa”.
Creio que a motivação de François Martins para publicar o referido ensaio deve-se à fase política que as Forças Armadas Portuguesas já vivenciavam desde meados dos anos 70, e que os militares brasileiros viriam a experimentar dez anos depois. A propósito desse período recente na vida nacional, cabe transcrever partes do artigo de Vicente Cavaliere, coronel aviador da FAB, escrito no início dos anos 2000, após a ocupação dos Estados Unidos no Afeganistão, o qual bem reflete o momento atual:
“Hoje em dia, as Forças Armadas Brasileiras não são [grifo meu] encaradas pela maioria da sociedade, pela classe política e pela mídia em geral como fator de integração nacional (por sua presença e apoio às regiões mais remotas e carentes do País), como fator de desenvolvimento científico e tecnológico ou como importantíssimo fator de dissuasão às ameaças externas. Elas são lembradas, preconceituosamente, pelos ‘anos de chumbo’, pelos ‘governos militares’ e pelos ‘20 anos de ditadura’... Em função desses argumentos, e também por pressões externas, elas estão cada vez mais desprestigiadas e enfraquecidas, sobrevivendo com verbas reduzidas ano a ano, com seus integrantes sendo dispensados e seus equipamentos se tornando obsoletos."
O fenômeno de falta de investimento na atividade-fim militar e na valorização dos militares de carreira, bem como a redução da influência política dos militares não é exclusividade do Brasil, ou de outros países em desenvolvimento. Ocorreu até mesmo com os EUA, em ocasiões distintas, no período entre as duas guerras mundiais, e no início da década de 90, logo após a queda do “Muro de Berlim”. A diferença é que a maturidade política norte-americana, aliada a seu poderio científico e tecnológico permitiu, rapidamente, reverter o processo. Nesses períodos, a especialização na atividade militar – o core business das Forças Armadas de qualquer país - torna-se depreciativa entre os próprios militares, quando deveria ser o contrário. Parece que os militares brasileiros passaram a experimentar, após o fim do Regime Militar, o mesmo clima pós-Guerra do Paraguai, quando, nas palavras do General Tasso Fragoso – citado por Leonardo Trevisan -, “veteranos, sejam oficiais e soldados... evitavam confirmar sua participação no conflito."
A história militar brasileira nos ensina sobre as causas e consequências de períodos semelhantes ao que estamos presenciando. Como muitos conhecem, após o fim da Guerra do Paraguai, o Governo Imperial desmobilizou, abruptamente, o poder militar nacional, tanto no Exército, quanto na Marinha. Essa política de redução de prioridades no campo militar, somado ao desgaste político e econômico durante o Governo de Floriano Peixoto, principalmente ao episódio conhecido como a “Revolta da Armada”, levou, paulatinamente, a um grave problema de falta de prioridade e profissionalização da atividade militar. Segundo relato do General Tito Escobar, citado no livro "Instituição Militar e Estado Brasileiro", de Leonardo Trevisan, “raros soldados produziram as escolas militares; sobraram-nos, entretanto, enraizados burocratas, literatos, publicistas e filósofos, engenheiros e arquitetos notáveis, políticos sôfregos e espertíssimos, eruditos professores de matemáticas, bons amigos da santa paz universal, inimigos da guerra, adversários do exército permanente”. Trevisan complementa essa avaliação, afirmando que “eram bacharéis fardados a concorrer com bacharéis sem farda, na conhecida expressão de Murilo de Carvalho. As próprias elites civis perceberam que este despreparo era um risco tão grave quanto o militarismo excessivo."
A situação da Marinha no pós-Guerra do Paraguai também não era das melhores. Conforme matéria publicada em 1888 pela Gazeta de Notícias, “um guarda-marinha ganhava no Rio a mesma coisa que um inspetor de fazenda analfabeto, enquanto um Almirante recebia um salário equivalente ao de um assistente de guarda-livros. Apenas aqueles oficiais do Exército e da Marinha que conseguiam obter algumas concessões bem remuneradas podiam viver dos seus salários de militares”. Sobre a matéria acima, Luiza Neves Gomes acrescenta, em seu artigo "A Marinha brasileira no pós-guerra do Paraguai – uma análise a partir da imprensa militar": “O fato é que as dotações dos exércitos foram congeladas a níveis anteriores à Guerra do Paraguai, o que a classe militar não esperava. A vitória sobre o Paraguai significou o surgimento de expectativas [dos militares] no sentido de que a sociedade civil, de onde provinha a classe política, haveria de reconhecer o ‘tributo de sangue vertido em defesa da nação'".
Sete décadas depois, o Coronel Humberto de Alencar Castello Branco, ao assumir a Diretoria de Ensino da Escola de Estado-Maior do Exército (designação anterior), encontrou situação parecida. Conforme descrição do General Ferdinando de Carvalho, então oficial-aluno da ECEME, “em 1946,... havia, na formação dos oficiais de estado-maior, um excesso de academicismo, incentivado pela grande descentralização do ensino no âmbito desta escola... Esse currículo originava, ao fim de três anos do curso, um oficial de estado-maior altamente intelectualizado, mas com pouca prática funcional, o que concorria para que fosse considerado um teórico por seus companheiros da tropa."
Concluindo, o core business das Forças Armadas representam as atividades essencialmente militares, ou bélicas, que devem orientar, portanto, as prioridades de investimento no preparo e aplicação do poder militar. Naturalmente que isso também inclui a atividade logística essencial ao desenvolvimento das operações. Esse é um princípio que deve ser defendido e praticado, em primeiro lugar, pelo próprio estamento militar. Se assim não for feito, ninguém mais o fará.
* Capitão de Mar e Guerra (Reformado) da Marinha do Brasil, Editor do Blog MAR & DEFESA.
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